quarta-feira, 15 de abril de 2009

OPINIÃO 95-96 - Arquivos da PIDE II


Ao Diário de Notícias - “Opinião”

A secção de Opinião insere hoje, 5/3, um texto em que Carlos Pacheco explana a sua posição sobre o debate lançado por António Barreto a respeito da legitimidade de o Estado guardar, como documentos históricos, cartas, fotografias e outros artigos pessoais, constantes dos arquivos da Pide.

Carlos Pacheco considera que se trata de um falso problema, pois em nenhum outro país “jamais se pôs em causa o facto de aqueles arquivos terem em seu poder documentos privados”. E acrescenta: “Naqueles países, nunca se conclamou contra o Estado, exigindo a devolução aos particulares de objectos que lhe foram subtraídos.” E remata: ”O que aconteceu aconteceu. Faz parte da história.” E ainda ”...é património da Nação. Ponto final”.

Mais à frente, apresenta como argumento de peso que se se começasse a remexer e a tirar documentos privados, “...seria o caos, a desarticulação, o desmembrar de um repositório único no seu género (...) que imediatamente afectaria a memória de todos os povos envolvidos.”

Quanto à legitimidade do Estado deter “papéis absolutamente privados, roubados pelas polícias”, é definitivo e lapidar: “À luz da História, esta legitimidade nem se discute. Só o Estado, e mais ninguém, pode ser o guardião desse património”.

Fernando Rosas, há algumas semanas, manifestara opinião semelhante, opondo-se a que se tocasse no acervo, pois correr-se-ia o risco de que lhe fossem retirados documentos que diminuissem o seu valor como testemunho de um período da nossa história cuja memória deve ser preservada. A questão dos documentos pessoais resume-se, no seu entender, à garantia de que a sua consulta e divulgação não serão feitas se tal fôr a vontade das pessoas visadas em tais documentos.

Esta polémica tem subjacente a questão da propriedade, logo, é uma questão muito sensível. Trata-se de definir em que condições a propriedade de um objecto passa de um indivíduo para o Estado. Por outro lado, um dos aspectos polémicos é precisamente se cartas pessoais e outros “papéis” sem “políticas” à mistura devem ser classificadas como património, ou não.

De passagem, e sem me deter muito na argumentação de Carlos Pacheco, parece-me que tudo se deve discutir, a começar pelo próprio Estado. As expressões “ponto final” (na discussão), “nem se discute”, “não se toca”, “só o Estado, e mais ninguém”, “categorias ideológicas sacrossantas” que pontuam o discurso deste historiador, por irónico que pareça, pontuavam também o discurso do poder do tempo de Salazar. A Pide existia, entre outras coisas, para evitar que se discutisse o que não se devia...

Parece-me pacífico que se uma das cartas dirigidas a António Barreto e surripiadas pela Pide contivesse um documento vivo, com valor real (por exemplo, um maço de acções da IBM) enviado por sua mãe, ser-lhe-ia muito fácil reavê-la. Qualquer tribunal negaria ao Estado a legitimidade da sua posse e determinaria a sua restituição ao legítimo proprietário. Por quê, então, uma carta pessoal, com uma fotografia, sem qualquer referência a actividades políticas, deverá ser propriedade do Estado?!

Os arquivos da Pide são constituídos por fichas das pessoas visadas, relatórios dos informadores, actas de interrogatórios, relatórios médicos, actas de buscas domiciliárias (ou outras), transcrições de escutas telefónicas, fotografias do visado em várias situações tiradas por agentes encarregados de o seguir, correspondência respeitante às actividades políticas, panfletos e livros proibidos (ou suspeitos...), objectos confiscados susceptíveis de caracterizar as actividades suspeitas e constituindo, eventualmente, matéria probatória, etc, etc, etc.

Parece-me razoável que o Estado detenha esses arquivos e regulamente a sua consulta e divulgação, salvaguardando o direito dos visados à privacidade.

Quanto a objectos estritamente pessoais, sem ligação directa a actividades políticas (ou criminosas) e cuja posse por parte da Pide não tenha resultado de um acto voluntário e livremente assumido pelo seu legítimo proprietário
[1], deveriam ser-lhes devolvidos (ou aos herdeiros constituídos), caso o desejassem.

Não vejo em que é que o arquivo ficaria desvalorizado. Por outro lado, acho errado (para não dizer idiota) que se proíba o razoável por se recear, com isso, abrir a porta ao inaceitável. Só essa óptica estulta impediria que fossem devolvidos papéis tão pessoais como as cartas de amor (de mãe, ou de esposa), a fotografia da prima Ernestina (cresceu imenso!) ou o livro com dedicatória da professora da 4ª classe.

Seria interessante que António Barreto entrasse com um processo para reaver a correspondência de sua mãe e irmãos, cuja propriedade, à data em que foram escritas será fàcilmente estabelecida. Para convencer o Tribunal de que tais cartas são documentos históricos, essenciais à caracterização de uma época, e que por isso, passaram a constituir propriedade sua, que argumentação aduziria o Estado?

. . . . .

NOTA:

[1] Isto é, se foi subtraído à força ou à surrelfa pela Pide.

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