quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 8, As Pensões dos Prisioneiros de Guerra

AS PENSÕES DOS PRISIONEIROS DE GUERRA [1]

Em 18 de Dezembro de 1961, a União Indiana invadiu os territórios de Goa, Damão e Diu, pondo fim pela força a 450 anos de presença portuguesa. Posto entre a espada e a parede, entre as suas convicções pacifistas e as pressões do seu partido e da opinião pública para que resolvesse a situação dos enclaves de dominação estrangeira, Nehru dificilmente poderia ter feito outra coisa.

Aliás, Salazar não só não lhe deu qualquer “aberta” nos contactos diplomáticos que a Índia ensaiou durante anos, como tratou com mão de ferro as tentativas de criação de partidos autonomistas em Goa. O cirurgião Pundlika Gaitondé , do Partido do Congresso (Goa), que fora preso em 1954 (mais 1135 pessoas), a partir da sua saída da prisão (do forte de Peniche, para onde veio deportado, depois de preso em Goa), desempenha um papel de destaque na luta contra a ditadura, tendo sido o primeiro secretário geral da CONCP-Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. Gaitondé defendia a integração dos enclaves portugueses na União Indiana, não considerando viável (nem com qualquer razão de ser) a independência da manta de retalhos que era o chamado Estado da Índia.

A tomada de Goa, Damão e Diu foi o culminar de um ano péssimo para Salazar, que começou com a tomada do Santa Maria por Galvão, continuou com o ataque às prisões de Luanda, a que se seguiu a onda de massacres no norte de Angola, o golpe palaciano de Botelho Moniz (marcado pela total inépcia dos putativos revoltosos e pela sua pouca disposição para correr riscos) e o desvio de um super Constellation da TAP que andou a lançar panfletos sobre Lisboa, antes de levar os sequestradores para (se bem me lembro) Argel.

O ataque a Goa foi precedido por sinais inequívocos do que se preparava, levando Portugal a evacuar as famílias dos militares, a esboçar um movimento a nível nacional para angariar fundos para comprar um porta aviões (!!!) que iria em socorro das tropas que guarneciam a colónia[2]. Entretanto o velho ditador deixou bem claro que, em caso de invasão, os soldados portugueses só poderiam ser heróis (mortos, claro!) ou traidores. Muito sensatamente, o Governador português, General Vassalo e Silva, preferiu evitar uma carnificina perfeitamente inútil (por muito gozo espiritual que desse a Salazar) e rendeu-se aos indianos, após as nossas tropas (NT) terem resistido aos invasores, sofrendo e provocando baixas, mas reconhecendo que a desproporção de meios no terreno e a inexistência de reservas por parte das NT, não deixava quaisquer dúvidas quanto ao desenlace final.

Os nossos militares foram feitos prisioneiros e ficaram, numa primeira fase, totalmente abandonados, pois Salazar não mostrou qualquer disponibilidade para negociar. Salazar evidenciou o mesmo espírito mesquinho em outros casos, como na perseguição que moveu ao Consul Aristides Sousa Mendes, outro que ousou proceder de acordo com a sua consciência, mas contra as ordens do caudilho. Valeu a intervenção da Cruz Vermelha que serviu de medianeira entre os dois Estados, mas não evitou que o repatriamento só chegasse após largos meses de prisão.
Muitos dos oficiais superiores tiveram as suas carreiras terminadas, em particular o General Vassalo e Silva a quem só faltou ter ido a Conselho de Guerra.

A atitude do Poder foi como se os militares portugueses, que se recusaram a morrer por um capricho do velho sacrista, tivessem cometido um acto de cobardia, traição ou tivessem de algum modo desonrado a farda e as forças armadas.

Nada mais injusto! O papel das Forças Armadas de um país não é necessariamente defendê-lo de vizinhos poderosos mas, se isso não fôr possível, marcar uma posição inequívoca de que a soberania nacional foi sobrepujada pela força. Ninguém esperaria que os exércitos da Polónia, da Bélgica (ou mesmo da França...) tivessem capacidade para deter na fronteira os exércitos do 3º Reich. Contudo não ficou qualquer dúvida de que a ocupação daqueles países pela Alemanha não foi feita com o consentimento dos mesmos. E para isso não foi necessário que os exércitos vencidos se deixassem matar até ao último soldado, como o velho sabujo de Santa Comba queria que os nossos militares fizessem em Goa.

A posição Portuguesa quanto a eventuais direitos sobre os territórios perdidos não foi minimamente prejudicada pela rendição, pois esta deu-se após combates sangrentos, que provocaram mortos e feridos, deixando bem claro que a ocupação só foi obtida pela maior (na verdade muito maior) força das armas.

O que Salazar não obteve, e isso por causa da rendição, foi uma dramatização da situação, que, bem explorada junto dos países ocidentais, lhe poderia ter rendido dividendos.

Tivesse Vassalo e Silva cumprido a ordem espúria, e estou mesmo a ver Salazar, com o dedinho mirrado em riste, os óculos encavalitados na ponta do nariz e a voz tremente, verberando o avanço das forças da desordem e do mal, que só se detiveram na sua sanha assassina quando viram o último dos mártires barbaramente chacinado.

Esquecendo as famílias enlutadas por mortes tão desnecessárias, louvaria e condecoraria a título póstumo os heróis (dignos do Gama e de Mouzinho) que teriam preferido morrer a permitir que o solo sagrado da Pátria fosse conspurcado por pés infiéis.

Salazar está morto, mas, pelos vistos, tem herdeiros que não deixam cair o estandarte da hipocrisia e teimam em enxovalhar, tantos anos depois, os militares da guarnição de Goa, Damão e Diu.

Como é possível, por muito mal assessorado que esteja, por muito caro que fique ao Estado o pagamento das pensões em causa, que um ministro tenha a falta de lucidez para dizer que os militares que estiveram meses como prisioneiros de guerra, no seguimento de um acto de guerra, não são (ou nunca foram) prisioneiros de guerra?!

Estiveram na Índia como presos de delito comum, sr ministro?

Estiveram retidos por sua livre vontade para meditarem na contingência da vida, sr ministro?

Estiveram a banhos, sr ministro?

Haja Deus!

. . . . .

NOTAS:

[1] Publicado no jornal APOIAR de Agosto/Outubro 2000 com o título “NEM PRISIONEIROS, NEM DE GUERRA (SALAZAR QUERIA-OS MORTOS!)”

[2] É difícil garantir que fosse esta a intenção de Salazar, de tal modo a ideia é peregrina, mas a verdade é que a ideia foi lançada e dela me ficou a noção de que um porta aviões era uma máquina de guerra absolutamente decisiva para quem a possuísse (pois se ele bastava para ir salvar a nossa querida Índia...)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 7, Tomar partido

TOMAR PARTIDO[1]

Ao fim de décadas de guerra civil pouco ficou por destruir em Angola, de tal modo que do país próspero, com uma agricultura florescente, uma indústria em rápida expansão e uma rede de infraestruturas viárias que cobria todo o território, pouco mais resta que a recordação já um tanto distorcida pelo tempo.

Com a saída dos portugueses, na sequência da descolonização possível[2], a rivalidade entre os movimentos de libertação que desde sempre existiu radicalizou-se e a guerra civil tornou-se uma constante até hoje, muito mais violenta e destruidora que a guerra que Portugal travou durante 14 anos.

Os curtos períodos de paz, na sequência de acordos conseguidos após negociações difíceis e complicadas, apenas serviram para as partes se rearmarem e tomarem fôlego para as batalhas que, fatalmente, se seguiriam às tréguas.

A mediação entre MPLA e UNITA assenta na convicção de que o desejo das partes em alcançar a paz é maior que o desejo de se sobreporem ao partido rival (inimigo, melhor dizendo). A mediação entende que o que separa os beligerantes são divergências (ultrapassáveis com um bocado de conversa...), mal entendidos que se podem desfazer com um diálogo franco e aberto, desejo de tachos e prebendas que se podem satisfazer fazendo um rateio imaginativo dos existentes e criando outros consoante as necessidades.

Só que o tempo passa, as várias “pazes” revelaram-se efémeras, as pessoas continuam a morrer, o país a ser destruído, e parece legítimo duvidar da justeza do caminho seguido. Será que a única esperança de paz é a vitória militar de uma das partes?

Esta ideia tem sido ventilada nos últimos tempos e quem a tanto se atreveu foi severamente criticado na comunicação social, pois criou-se no espírito das pessoas civilizadas (chamemos-lhes assim, à falta de melhor) a ideia de que a paz é sempre possível pelo diálogo ou seja, a paz além de um fim em si é tambem um meio, enquanto que a guerra, podendo ser um fim para quem dela vive, nunca é um meio para atingir a paz.

Almeida Santos, com o à vontade que os anos lhe dão, atreveu-se a defender que, não sendo possível a convivência entre a UNITA e o MPLA (a partilha do poder, entenda-se), nem com décadas de negociações, directas ou com mediação, nem com eleições, a paz só advirá quando um dos contendores derrotar o outro.

Afinal a ideia nada tem de nova nem de herética, pois ao longo da história houve diversos momentos em que países isolados ou a comunidade internacional souberam reconhecer (nem sempre atempadamente) a necessidade de pôr fim na contemporização e passar à guerra. Em muitos casos, a essas guerras sucederam períodos longos de paz, como se a guerra tivesse aliviado as tensões acumuladas (ou eliminado as suas causas).

Quando a França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha iniciando a 2ª guerra Mundial não o fizeram por terem sido atacadas ou estarem na iminência de tal, mas porque reconheceram que o processo negocial que conduziam não garantiria a paz na Europa, e estava a servir para a Alemanha se rearmar e conquistar países vizinhos sem disparar um tiro. A invasão da Polónia terá sido a gota de água que fez aqueles países dizerem não à paz podre e optarem pela guerra como caminho para a paz. Por outro lado, Hitler tinha explicado muito bem (a quem teve a pachorra de o ler) o que tencionava fazer, pelo que era da mais elementar prudência evitar que a guerra começasse quando ele estivesse plenamente preparado para ela.

A guerra civil angolana arrasta-se há mais de vinte anos, motivada por ódios e divergências que têm muito mais com diferenças culturais e civilizacionais do que com ideologias ou com as tão apregoadas rivalidades tribais. Durante toda a guerra colonial a UNITA, MPLA e FNLA mantiveram entre si, em paralelo com a luta contra Portugal, uma guerra fraticida, marcada por alianças pontuais e efémeras, parecendo hoje claro que quem tinha que se acomodar já se acomodou (parte dos dirigentes da FNLA e alguns da UNITA estão bem instalados na vida, em Luanda, no Governo ou na sociedade dita civil).

A quem só o poder total interessa, a qualquer preço, para além de quaisquer resultados eleitorais, resta continuar a guerra.

Esta é a atitude irredutível de Savimbi que lidera a Unita como um autêntico soba todo poderoso, sem adjuntos e (muito menos!) sem oposição, um verdadeiro Senhor da Guerra.

O Muata não tem sequer que se preocupar com a alimentação dos refugiados, pois desde sempre a população tende a refugiar-se nas áreas controladas pelo Governo (por que será?...) acompanhando os movimentos das frentes de guerra. Acolhem-se às cidades cercadas (Huambo, Kuito, Malange), redutos governamentais, onde a artilharia inimiga as bombardeia indiscriminadamente. Recorde-se a fuga dramática do Huambo de dezenas de milhar de pessoas, rumo a Benguela, numa das últimas vezes que aquela martirizada cidade foi ocupada pela UNITA.

As recentes[3] declarações de Savimbi sobre o problema dos refugiados, menosprezando as preocupações da comunidade internacional sobre a fome, sugerem que o senhor não tem contacto directo com o problema, que se passa “do outro lado” e que, portanto, parece não lhe dizer respeito.

Na entrevista que deu à BBC, Savimbi mostrava grande dificuldade em concluir frases simples, exprimindo-se numa voz entaramelada, distorcida (pelo vinho? pela liamba?) ficando claro que à sua volta ninguém tem coragem para o impedir de pegar no telefone naquele estado, quanto mais para dar opiniões que de algum modo pareçam opostas às suas.

Infelizmente, parte da comunidade internacional continua apegada à lógica da guerra fria, defendendo o indefensável por o MPLA ter sido comunista e no seu campo reinar a corrupção[4].

É tempo de perceber, pelo que ambas as partes nos mostraram ao longo de décadas, qual delas permite que os angolanos vivam e trabalhem na sua terra, estudem, negoceiem, gozem os tempos de lazer (nas praias, na caça, na pesca, nos bares, nos cinemas, nos jardins, etc, etc), contribuam para a reconstrução do país[5], intervenham na vida pública, nas artes, nas letras, na ciência, na política ... e é tempo de tomar partido.

. . . . . .
NOTAS:

[1] Publicado no jornal APOIAR em Dezembro 99

[2] ao que parece Paulo Portas acredita que poderia ter sido significativamente diferente se os malandros dos vermelhos o tivessem permitido...

[3] meados de 1999, entrevista à BBC, por telefone

[4] como seria de esperar, com tanto tempo de guerra civil, com tanto tempo de ascendente dos generais, com tanto tempo de compras com malas de dólares na mão (que as sansões a tanto obrigam...)

[5] destruído pela UNITA, com grande eficiência e criatividade…

sábado, 7 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 6, O Último Marechal



Sr Director (PÚBLICO)

Permita-me que, com alguns dias de atraso, diga de minha justiça sobre uma carta publicada no Público do passado dia 22, da autoria do sr General Carlos Azeredo. A carta foi motivada pelo programa da SIC “O último dos Marechais” e nela o sr General, spinolista convicto, zurze forte e feio no Marechal Costa Gomes e tece os habituais panegíricos ao Marechal Spínola, a quem chama “último cabo de guerra português”. Do texto escorre o palavreado forte e adjectivação fácil a que o pitoresco general nos habituou durante a sua passagem pela casa militar do Presidente Soares.

Não me tomando das dores de nenhum dos gerontes (um deles já falecido), e muito menos dos seus irrequietos discípulos, parece-me conveniente notar que alguns dos pontos que a carta refere estão longe de ser consensuais no meio castrense e fora dele:

1. Um bom general não precisa de ter estado em operações (de arma na mão ou de pingalim em punho...) para o ser. Em países que entraram em guerra, depois de décadas de paz, os oficiais (que nunca ouviram disparar fora das carreiras de tiro) revelaram-se bons ou maus, competentes ou incompetentes, cobardes ou valentes independentemente da experiência anterior (que não tinham). A acção de Costa Gomes em Angola, como Comandante em Chefe, foi mais que meritória (em termos de resultados) sem se dar a aparições folclóricas e teatrais. Nos tempos que vão correndo, o Sr General Azeredo devia saber que a informação, essencial ao processo decisório, flui através dos canais mais diversos que não excluem a observação directa in loco, mas, muitas vezes, a dispensam.

2. A operação Mar Verde (ataque a Conakry), para além de libertar os prisioneiros e afundar as lanchas rápidas, foi um fiasco completo: não depôs Sékou Touré; não matou (nem capturou) Amílcar Cabral; não destruiu os MIGs. O apoio internacional ao PAIGC redobrou e quase se obteve o resultado perverso (e talvez não ponderado) de a armada soviética, ávida de protagonismo, fazer um bloqueio aos portos da Guiné. Teria sido a emenda pior que o soneto... A assunção pública da operação teria sido um acto perfeitamente irresponsável e gratuito: o aviso estava feito a quem interessava fazer (à Guiné Conakry e ao PAIGC), ficando a posição de Portugal, na sua pose de país agredido mas respeitador da integridade territorial dos vizinhos, preservada nos fóruns internacionais.

3. A acção do Marechal Spínola nos seus cinco anos de Guiné baseou-se num equívoco, de uma ingenuidade a toda a prova:


- pensar que seria possível convencer uma parte significativa da população da Guiné de que os “terroristas” eram seus inimigos e que o seu futuro estava com Portugal.


Mesmo servindo-se dos fulas, dividindo para reinar, o mais que Spínola conseguiu foi uma pequena “vietnamização” da guerra, com bandos de infelizes que pagam agora com o exílio o engano em que se deixaram induzir, pegando em armas ao lado do exército estrangeiro contra os seus conterrâneos. As confusas negociações em que Spínola se envolveu com o PAIGC não conduziram a nada mais palpável do que a morte de três majores, enviados pelo General para conferenciar não se sabe bem com quem, nem o quê nem com que garantias...

4. A própria evacuação de parte do Sul da Guiné decidida por Spínola por aí não haver população para defender, foi uma decisão de mérito mais que duvidoso: permitiu à guerrilha apresentar zonas libertadas (se bem que sujeitas a operações das nossas tropas de intervenção). Foi aí que, pouco mais tarde, o PAIGC proclamou a República da Guiné Bissau, para o que era essencial “possuir” território sobre o qual exercesse soberania. Portugal passou, desse modo, a combater, não um bando de rebeldes terroristas, mas um exército regular de um Estado independente reconhecido por uma centena de países.

5. Após o 25 de Abril, o General Spínola transferiu as suas teses “ultramarinas” da Guiné para Angola, que pretendeu manter ligada a Portugal num esquema confuso que passaria por um federalismo vago no qual Mobutu, com quem se encontrou em Cabo Verde, desempenharia um papel (qual, nunca disse).

6. Com o ascendente que o PC ganhou, quer no MFA quer no aparelho de Estado, Spínola teve finalmente o seu papel meritório: opôs-se frontalmente à ascensão do PC e chamou a atenção do País para a maioria silenciosa que repudiava o comunismo (como as sucessivas eleições demonstraram sem margem para dúvidas). Só que o modo como Spínola procedeu levou o País à beira da guerra civil, pois a diplomacia nunca foi o seu forte (nem da guarda pretoriana que se manteve à sua volta desde os tempos da Guiné). Na minha modesta opinião, mais do que a Mário Soares, foi ao então General Costa Gomes que se ficou a dever, em grande parte, o mérito de ter sido evitada a guerra civil.

Para concluir, diria que há muitos comandantes de Batalhão, competentes, valentes e bons condutores de homens, que chegam ao generalato sem conseguirem ver para além dos limites do quartel.

Sem uma visão global do exército, e muito menos do todo nacional, continuam convencidos de que “quem anda no terreno é que sabe”.

É óbvio que estes “cabos de guerra”, de luvas e pingalim, mas sem cavalo, dão maus generais e péssimos políticos[1].

Afinal, é o princípio de Peter a funcionar.

. . . . .

NOTAS:

[1] Esta carta foi escrita antes do Sr General se envolver em polémica com a comunidade judaica e assumir-se como candidato à Câmara Municipal do Porto. Antes, pois, de o General Azeredo nos ter mostrado em toda a plenitude a sua falta de diplomacia (ou de simples bom senso e bom gosto) ao escrever sobre o “ouro nazi”, ferindo a susceptibilidade dos israelitas (cuja comunidade é uma influente vaca sagrada, como sabe qualquer político aprendiz…) e ao quase centrar a campanha eleitoral no capachinho do Dr Fernando Gomes.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 5, O Prof Herlander...

Ao COMBATENTE - Órgão da Liga dos Combatentes[1]

Sr Director:

O número de Janeiro do Combatente, inclui um artigo do Sr Herlânder Duarte intitulado “Post traumatic stress disorder”. Não sei se o articulista assenta as suas opiniões em conhecimentos científicos para pôr em causa uma doença de foro psiquiátrico, nem se se baseia em experiência própria para escrever de forma tão enfática sobre a política ultramarina e a guerra de África.

Penso, em todo o caso, que se impõe uma resposta, pelo modo impiedoso como se refere a camaradas nossos que estiveram na guerra, numa ou mais comissões por imposição, integrados nas Forças Armadas que deram corpo à política ultramarina definida pelo governo de então.

Não me deterei nas ideias do Sr Herlânder sobre a guerra do Ultramar, sobre a confiança que as populações depositavam em nós, nem sobre os inocentes que defendíamos, para além da Civilização e da Cristandade. Tampouco perderei o meu latim a discutir se a mocidade foi feita para o prazer, para o heroísmo, ou se a Providência lhe reservou outro destino.

O Sr Herlânder tem todo o direito a ter as suas opiniões e a exprimi-las, no seguimento das quais certamente terá lutado em África como voluntário e não terá deixado de resistir de arma na mão ao golpe do 25 de Abril. Com as posições intolerantes, firmes e hiper adjectivadas que manifesta, não seria de admitir menos que isso!

Assim, não vou perder tempo a desmontar a lógica duvidosa do articulista. Não resisto, contudo, a registar que ele acredita em traumas provocados pela exposição ao “rock” que “atordoa e martela, exaspera o sistema nervoso, desequilibra o cérebro, embrutece, provoca perturbações na consciência e na vontade”. Contudo, nega veementemente, que a exposição a um ambiente de perigo iminente como a guerra, com o seu cortejo de bombardeamentos, mortes (por vezes ao nosso lado), flagelações, sofrimento e privações de toda a ordem possa provocar traumas.

Voltando ao assunto que me interessa, penso que se deve deixar à ciência e aos médicos a definição e caracterização das doenças, sejam elas do foro físico ou psíquico, mas em particular estas últimas pois para o seu diagnóstico a evidência nem sempre é critério seguro.

Nas décadas de 60 e 70, as Forças Armadas assumiram sucessivamente a defesa de Angola, Moçambique e Guiné, em consequência da política ultramarina que o País prosseguia. Dos milhares de jovens que foram mobilizados ao longo dos anos, muitos foram feridos ou sofreram acidentes, de que resultaram mortes, mutilações, deficiências, cicatrizes.

Parece razoável que o Estado assuma por inteiro as consequências das suas políticas, e compense adequadamente os cidadãos que lhes deram corpo e, por causa delas, tiveram a sua vida prejudicada, ou terminada. Esta assunção de responsabilidades, nem sempre se fez de forma fácil e cordata. No início dos anos 70, antes e depois do 25 de Abril, os deficientes viram-se na contingência de desenvolver acções à margem das FA[2] e a criar uma associação, a ADFA, para conseguirem do Estado mais do que um abono miserável e aviltante. Infelizmente, o Estado nem sempre se comporta como uma pessoa de bem...

Quanto aos militares que, tendo a felicidade de voltar da guerra fisicamente indemnes, ficaram psiquicamente afectados, encontraram-se perante um Estado (e um Exército...) de mentalidade marcadamente arcaica, para quem as doenças psíquicas são infamantes e insidiosas, anuviam e falseiam a imagem dos combatentes. Há mesmo quem, como o Sr Herlânder Duarte, as relacione com irresponsabilidade, desonra e traição!

É preciso que a mentalidade das FA evolua e se actualize, sem receio de, com isso, alienar valores e princípios que as honram e distinguem. É necessário que os quadros aprendam que o ambiente em teatro de guerra pode afectar os combatentes de formas mais subtis e, por vezes, mais duradouras que os ferimentos e aleijões. Sem essa evolução, não podemos esperar que os mancebos[3] incorporados e mobilizados tenham um tratamento sério que lhes permita voltar da guerra sãos de corpo e espírito.

É inadmissível que o Estado tarde em assumir as suas responsabilidades para com os traumatizados de guerra.

É lamentável que as Forças Armadas não promovam o seu tratamento e neguem apoio à sua reinserção.

Acima de tudo, é desonroso que um Combatente olhe com desdém e desprezo para o seu camarada de armas, só porque não lhe descortina os aleijões.

Urge, pois, que a Liga dos Combatentes tome uma posição clara e informada sobre este assunto, e defina critérios que permitam enquadrar e apoiar estes camaradas. É imperdoável, para além de injusto, que se continue a meter no mesmo saco traumatizados, desertores, objectores de consciência e traidores.

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NOTAS:

No seguimento desta carta fui recebido pelo Presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, general Altino Pinto de Magalhães, pessoa muito amável que me disse do interesse da Liga pelo tratamento dos ex-combatentes afectados pelo stress de guerra e que a Liga apoiaria os casos concretos que lhe fossem presentes. Na prática, só alguns anos depois, com a extinção de cromos como o Herlander, a Liga passou a assumir como seu o apoio àqueles ex-combatentes.

O processo contra o Herlander foi ganho pelo Dr Afonso Albuquerque que recebeu uma indemnização quase simbólica paga pela Liga (salvo erro). Comemorámos com uma almoçarada à conta do Herlander no Antigo Retiro do Quebra Bilhas, ali ao Campo Grande, entretanto encerrado por obra e graça da Opus Dei, dona do prédio.

[1] Esta carta não foi publicada pelo Combatente; foi-no pela revista da Apoiar, nª 2, de Julho/Setembro de 1996, juntamente com o artigo do Sr Herlander Duarte, e da resposta do Dr Afonso de Albuquerque. No seguimento desta troca de cartas, o Dr Afonso de Albuquerque processou o Sr Herlander Duarte. O processo estava em fase de instrução no início de 1997.

[2] chegaram, inclusive, a fazer manifestações de cadeiras de rodas.

[3] estou a falar dos nossos filhos, e não de seres abstractos e imateriais, putativos filhos da Pátria.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 4, O Stress de Guerra e os equívocos

Ao Notícias Magazine - “Faça-se ouvir”

O número do passado domingo inclui um dossier respeitante a “Atrocidades da Guerra Colonial”, com fotografias que dão uma ideia do clima que se viveu nos primeiros tempos da guerra em Angola, em particular no período que se seguiu às matanças de 15 de Março de 1961. Nessa época eu era miúdo, estava em Nova Lisboa (actual Huambo), e lembro-me bem da onda de medo (e também de indignação, e de sede de vingança) que se propagou a toda a Angola, e que conduziu ao armamento maciço da população branca e à criação de milícias de autodefesa. Anos mais tarde fiz uma comissão no Norte de Angola (Quibaxe e Catete), onde estava quando se deu o 25 de Abril.

Voltando ao dossier do Notícias Magazine, ele inclui um texto sobre o stress de guerra, doença que terá atingido uma boa parte dos soldados que combateram em África, e que ainda hoje “vivem” as experiências que os traumatizaram há mais de 20 anos. Só que este tema permite sempre a mistura de alhos com bugalhos, o que é deveras desagradável. Vejamos dois casos:

1. O Sr J.S. mistura a descrição da sua doença com a alusão a “alguns ex-combatentes e oficiais que estão doentes porque a guerra acabou. (...) que faziam duas e três comissões voluntàriamente. São os que continuam a defender ideias colonialistas e racistas (...) que cometeram massacres (...) mas que não se sentem culpados.” Não me consta que o stress pós traumático só atinja os “bonzinhos”, nem que a ele estejam imunes os racistas e colonialista (actuais e de antanho). Será que o Sr JS os considera responsáveis (culpados!) pelos seus padecimentos?

2. O Dr Albuquerque descreve o caso de um oficial de informações que logo no primeiro interrogatório espancou o prisioneiro (imitando o Pide), estrangulou-o e... teve um orgasmo! Continuou a espancar, a estrangular e a ter orgasmos. Parece-me que este caso está manifestamente “fora do baralho”, e que a pessoa em questão não ficou doente por causa da guerra. Quando muito, a guerra agravou a sua doença, ao retirá-lo da sociedade civil, onde podia ter orgasmos, mas não podia bater nem estrangular ninguém impunemente, mergulhando-o num ambiente onde as suas tendências (para não dizer taras) tiveram plena realização. Por outro lado, parece-me grotesca a referência ao Pide, que terá dado o mau exemplo ao alferes: o que sucedeu foi que a semente encontrou terreno tão fértil, tão bom, que germinou logo à primeira (se me permite a metáfora).

A concluir, diria que há que tentar discernir entre o que a guerra fez a pessoas que eram sãs e equilibradas, e o que aconteceu a pessoas que foram mobilizadas já doentes, vulneráveis e indefesas contra as situações extremas que a guerra proporciona.

O tratamento dos doentes terá mais probabilidades de sucesso se conhecermos a causa da doença de que padecem, em vez de assumirmos a priori que ela surgiu com a guerra e por causa dela.