terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 8 O Início do Terrorismo


Nessa altura, estaríamos em 1959, o eco da agitação nos Congos antes e após as independências fazia-se ouvir em Angola, em parte pelos noticiários e pelos jornais, atenuados pela censura, em parte pela Rádio Brazzaville. Esta emissora francesa captava-se muito bem e tinha programação em português [1]. Os noticiários eram muito mais sumarentos que os das rádios locais (radio clube da Huíla) e das que emitiam a partir de Luanda (Emissora Oficial, Rádio Clube de Angola e Radio Eclesia ou emissora católica).

Era pela Radio Brazzaville que sabíamos de algumas coisas que se passavam em Angola, ou com ela relacionadas. Falava-se muito sobre os refugiados de Angola nos Congos e em questões na fronteira de Cabinda com o Congo Brazzaville (ex Congo Francês, mais tarde República Popular do Congo). Falava-se também de novos personagens, uns que mandavam, outros que queriam mandar, como o abade Youlou, o Lumumba (à esquerda), o Kasavubu, o Moisés Tschombé[2], mais tarde o coronel Mobutu.

Um nome habitualmente ouvido nessas emissões era o de Dag Hammarsjoeld (foto a seguir), o nórdico secretário geral da ONU, que andou a mediar conflitos na zona, acabando por morrer num acidente de aviação. A primeira impressão que tive da ONU identifica-se com a sua imagem de homem de acção, com um toque de herói abnegado, em contraste com os seus sucessores cinzentões, e com o mastodonte burocrático em que a ONU se tornou.

Estava-se, nesse tempo, no limiar de uma situação nova, que nunca ocorrera durante os séculos que já levava a presença portuguesa em África: havia várias colónias que tinham ascendido à independência, e havia um sentimento quase generalizado nos fóruns internacionais de que as restantes colónias deviam seguir o mesmo caminho, se essa fosse a vontade expressa dos seus habitantes. Havia, pois, que lhes perguntar o que queriam.

Até então, os territórios africanos eram herdados, doados, divididos pelas potências europeias a seu bel prazer, sem qualquer atenção ao facto de esses territórios, na sua quase totalidade, serem habitados à data da chegada dos europeus. Ao traçar e retraçar as fronteiras não eram sequer tidas em conta as características tribais ou afinidades culturais das populações acontecendo muitas vezes uma tribo (ou mesmo uma nação) ficar dividida por duas colónias dos Senhores europeus. (Na foto ao lado, Leopoldo II , "dono" do Congo Belga).

O direito de posse sobre um território tinha que ver com quem lá chegou primeiro (critério da descoberta), depois com a ocupação efectiva, e mais tarde, com a capacidade para desenvolver a colónia (um dos argumentos usados pela Alemanha para contestar a presença de Portugal no Sul de Angola, candidatando-se, claro!, à sucessão...).

Nenhum dos critérios tinha em conta a vontade das populações, tida como selvagem e incapaz de se governar, sem a mão firme do europeu. Esta arrogância era a atitude corrente para com os seres inferiores, não só pretos, mas também pobres, hispânicos (nos States) ou simplesmente mulheres. Nos países mais desenvolvidos da Europa e na terra do Tio Sam, as mulheres, por muito instruídas que fossem, não tiveram até não há muito tempo,
direito de voto. Em quase todos esses países a sociedade estava (e ainda está, se bem que em menor escala) organizada de modo a que apenas uma elite muito restrita (a nata da nata da nata) tivesse efectiva intervenção na gestão da coisa pública.

Não é de espantar, pois, que os participantes da Conferência de Berlim tivessem mais em que pensar do que na opinião de pretos sujos, iletrados[3], primitivos e ainda por cima gentios!

Após a Segunda Guerra Mundial, com as independências da Índia e da Indonésia, e mais tarde com o fim da teimosia francesa na Indochina, a dominação colonial em África entrou em rápida desagregação. Sobrou Portugal.

Durante séculos, os militares portugueses cobriram-se da glória possível e de medalhas mantendo em respeito hordas ululantes de pretos armados de zagaias, mas sempre inconformados com a dominação portuguesa. As campanhas de África gozavam, então, da aprovação geral, desde que as potências coloniais não se imiscuíssem nos assuntos das colónias vizinhas. (Ao lado, foto do Gungunhana)

Nesse tempo, ninguém daria atenção a um eventual relatório sobre matanças de populações mais ou menos indefesas, nem sobre utilização de trabalho mais ou menos escravo. Só em casos excepcionais uma potência colonial permitiria que cidadãos seus fornecessem armas modernas ao gentio[4]. A repressão dos régulos insurrectos estava, pois, facilitada.

No início da década de sessenta, Angola estava já em boa parte rodeada por países independentes, antigas colónias. Uma francesa (Congo Brazza), outra belga (Congo Kinshasa, depois República do Zaire) e uma outra inglesa (Zâmbia, após desmembramento da efémera Federação das Rodésias e Niassalândia). Só a sul havia uma fronteira amiga, o Sudoeste Africano, sob a tutela da África do Sul desde a 2ª Guerra Mundial.

O sentimento de repúdio que o preto nutria pelo ocupante estrangeiro que lhe roubava a terra, cobrava um imposto arbitrário, impunha condições de trabalho desumanas e, ainda por cima, o tratava à porrada, tinha, finalmente, condições para dar origem a uma verdadeira resistência nacional organizada, armada e apoiada do exterior.

A presença portuguesa em África, nos moldes tradicionais, tinha os dias contados.

(foto do Vera Cruz com a devida vénia ao blog Guerra Colonial).

Salazar tentou contrariar os ventos da História (a que se referia com desdém) mandando uma geração inteira para uma guerra iníqua e sem futuro.

Os primeiros movimentos de tropas, prevenindo a tormenta que se aproximava, consistiram no reforço do dispositivo de defesa de Cabinda, à custa dos regimentos da guarnição da província, ainda em 1960.

De Sá da Bandeira seguiu um destacamento que se distribuiu pelo Dinge[5] e Chiaca, esta última terreola em pleno coração do Maiombe[6]. Pretendia-se evitar que a agitação nos Congos, onde a Abako tinha papel de destaque, se propagasse para o interior de Cabinda. Esse objectivo foi, na generalidade, conseguido, não se tendo registado no enclave nem sombra do que viria a acontecer meses mais tarde em Luanda e no norte de Angola.

(Veja os resumos dos episódios sobre a Guerra Colonial; os dois primeiros sobre os massacres da UPA 1º Episódio; 2º Episódio; 3º Episódio; se quiser ver os episódios seguintes que lhe interessarem, seleccione-os directamente do You Tube, a partir de um destes episódios)

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NOTAS:

[1] Tinha até uma rubrica em que se ensinava o ouvinte a falar francês (par votres oreilles, parlez le français), língua caída em desuso mas muito útil naqueles tempos, em particular em África.

[2] estes personagens entravam em várias canções com versos do tipo “O Lumumba e o Kasavubu andam às turras por causa da ONU” “Quem manda sou eu, quem manda és tu; quem manda é o Kasavubu”, com música do Mustafá. Havia também versões hard core, que me dispenso de pormenorizar.

[3] O próprio PCP, farol da luta pelas liberdades (umas mais, outras só assim assim, outras nem tanto...), se lhes referia em pelo século XX como “aquela pretalhada ignara”.


[4] A primeira grande Guerra foi um desses casos excepcionais; a Alemanha fartou-se de distribuir armas aos Cuanhamas no Sul de Angola, como o fez no Norte de Moçambique e nas colónias inglesas que confinavam com o Tanganica.

[5] O meu pai seguiu na companhia que se instalou no Dinge, e por lá ficou pouco menos de um ano.

[6] O Maiombe era, nesse tempo, praticamente uma floresta virgem, pouco penetrada pelo Homem, sendo ainda frequente a presença de gorilas.

domingo, 28 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 7 A Tropa

As unidades militares existentes em Angola eram constituídas por um pequeno número de regimentos, sediados nas principais capitais de Distrito, complementadas por unidades de diversas especialidades. Os efectivos compreendiam um núcleo de graduados e especialistas que enquadravam tropa de recrutamento local que, após a recruta e especialidade, ficava apta (“pronta” é o termo consagrado) a prestar serviço.

Quando ocorriam problemas que os Chefes de Posto, com os seus sipaios, não conseguiam resolver, organizavam-se expedições, a partir das cidades onde os regimentos estavam sediados, para repor a ordem, acalmar o indígena e submeter o régulo revoltado. Em caso de necessidade, quando as unidades existentes não davam conta do recado, era enviado um destacamento da Metrópole.

Assim sucedeu durante a Primeira Guerra Mundial, em que foram enviados dois batalhões para fazer face às pretensões dos alemães da Damaralândia (depois Sudoeste Africano, actual Namíbia). Assim sucedeu depois de 1961 quando a guerra pela independência se generalizou e os efectivos tiveram que ser redimensionados e o dispositivo no terreno ajustado.

É curioso referir que durante os combates entre portugueses e alemães, os pretos (Cuanhamas, Herreros e outros) aproveitaram para fazer verdadeiras razias na tropa portuguesa em retirada, enfraquecida pelos combates, pela doença e pela sede[1]. A resistência da população de Angola contra o invasor europeu só se atenuou nos períodos em que o equilíbrio de forças lhe era manifestamente desfavorável. De resto, a penetração era acordada com os régulos e sobas, na base da troca de favores e presentes, ou imposta pela força onde a força existia (ou seja, apenas no litoral até fins do século XIX)[2].

O caso de Silva Porto é paradigmático. O sertanejo, capitão mór do Bié, ficara na miséria em 1880, quando um grande incêndio nas suas casas e armazéns o deixou despojado de bens, tirando-lhe todo o peso negocial junto do soba do Bié. Anos mais tarde, em 1890, quando Silva Porto tentava obter do soba autorização para a coluna de Paiva Couceiro atravessar os territórios do régulo, este enxovalhou-o e humilhou-o (consta que lhe chamou traidor e lhe passou a mão pelas barbas...). Amargurado, sentindo-se desonrado, Silva Porto suicidou-se.

O domínio colonial era, pois, muito precário e o decantado portuguesismo que imperava no ultramar era pouco menos que pura ficção...

Voltando a 1960, o recrutamento apoiava-se no sistema administrativo que cobria todo o território, devendo os chefes de posto promover a ida dos mancebos à inspecção, quando atingissem a idade própria, com vista à sua incorporação ou dispensa do serviço militar.

É claro que o recenseamento era bastante imperfeito, de modo que a expressão tão usada na Metrópole de “ir às sortes”, assumia um novo e mais literal sentido nestas longínquas paragens. Era o olho clínico do Chefe de Posto que determinava se um mancebo tinha dezoito anos, se tinha a necessária robustez física, se era amparo de mãe, se era voluntário. (As fotos anterior e seguinte foram tiradas do livro A Colonização do Sul de Angola de F. Cerviño Padrão)

O resultado desta triagem era, muitas vezes, um grupo de pretos assustados e sem perceberem muito bem ao que vinham (mal arranhavam o português). Os menos voluntários vinham convenientemente amarrados para não fugirem pelo caminho. Dizia-se, na altura, que eram recrutas apanhados a laço.

Era uma tropa que ficava razoavelmente barata, pois a soldadesca vivia em alojamentos espartanos, em casernas onde se alinhavam beliches com tarimba de madeira e cobertor (porque no mato a cama e o colchão não estavam nos hábitos daquelas gentes), fardava quase sempre calção e camisa de zuarte (era-lhes naturalmente distribuído o restante fardamento para quando estavam de guarda, para exercícios e marchas e pouco mais[3]).

O rancho estava de acordo com os hábitos da terra (pirão de milho ou feijão e peixe seco a nadar em óleo de palma). Havia, pois, a preocupação louvável de não impor aos soldados hábitos dispendiosos que não pudessem custear quando voltassem à vida civil[4]. Esta ementa não era servida aos soldados europeus e muito menos nas messes de oficiais e sargentos, mantendo-se no rancho a clara distinção entre pretos e brancos.

O serviço militar tinha, contudo, um lado positivo: dava ao soldado uma perspectiva da sua terra muito diferente dos horizontes limitados do quimbo[5], ensinava-lhe o português e, com um pouco de sorte, dava-lhe acesso à escolas regimentais onde lhe ministrava as primeiras letras e os números.

As questões disciplinares eram tratadas de modo um tanto fora do que prescrevia o RDM[6]. O preto era tido como uma criatura de índole especial, com uma filosofia de vida diferente da do branco que, entre outras coisas, não lhe permitia sentir-se punido quando o confinavam ao quartel (ou mesmo à prisão do quartel), onde lhe era permitido dormir e comer a horas certas e sem coacção de maior. Considerava-se que só com porrada percebiam que tinham feito mal, de modo era a porrada que substituía grande parte das penas prescritas no RDM.

O instrumento mais usado para manter a disciplina era a palmatória, nesta tropa tal como na escola primária, tal como na Administração. As palmatoadas eram aplicadas na palma das mãos e nas plantas dos pés, quando aquelas ficavam inchadas e insensíveis.

Como não podia deixar de ser, o meu pai, sensível a estas coisas, ficava pior que estragado quando ouvia uma sessão de palmatoadas. Os efeitos sonoros não eram problema (a polícia não viria em socorro de quem gritava...), pois a terapêutica era de uso corrente e generalizado, e os gritos do justiçado (?) até ajudavam a manter em respeito os ouvintes, eles próprios potenciais protagonistas.

A recusa do meu pai em assistir a estes espectáculos, a recusa muito mais firme em participar neles, os resmungos e alguns comentários que se atreveu a fazer, deram nas vistas do comandante de companhia, capitão Oliveira[7], que passou a chateá-lo amiúde, chamando-lhe o “nosso sargento democrata”, e, mais tarde, o “nosso sargento comunista”.

Um comuna, nos tempos que vão correndo, é tido, quando muito, como uma relíquia do passado, e não tanto como um ser perverso, subversivo e comedor de criancinhas. Mas naquele tempo, um comunista era um inimigo do regime, um tipo perigoso que gritava “Viva a Rússia!” à menor provocação e que estava empenhado em que a nosso Portugal, pobrezinho mas asseado onde cada um conhecia o seu lugar[8], se tornasse numa bandalheira onde as pessoas de bem seriam confundidas com a ralé, e ninguém mais respeitaria aqueles que, pela ordem natural das coisas, estão muito acima da plebe[9].

Ser apontado como comunista era, pois, perigoso, mesmo que essa acusação derivasse do simples facto de achar que era uma selvajaria bater nos pretos.

Um belo dia, o Ginja dirigiu-se ao meu pai, mais uma vez, como o “nosso sargento comunista”, e desencadeou uma reacção explosiva, como se a pressão acumulada numa panela tivesse feito saltar a tampa. Um tinteiro voou na direcção das ventas do tratante[10], creio que não acertou, o meu pai terá gritado qualquer coisa como “este sacana desgraça-me, mas eu dou-lhe um tiro” e correu cada um para o seu lado: o meu pai para a arrecadação para sacar uma pistola, o Ginja, esbaforido pela parada fora, a refugiar-se na casa da guarda.

Felizmente o quarteleiro, um soldado preto que se apercebeu do que se passava, fechou-se na arrecadação e recusou-se a dar a arma que o meu pai queria.

A cena terminou com o meu pai a bater na porta da casa da guarda e a gritar, o Ginja lá dentro de porta aferrolhada (borrado de medo), e a plateia a gozar o prato. Valeu ao meu pai o facto de a tropa e a Pide nunca terem tido um relacionamento muito cordial, o Ginja ser pouco bem visto e, acima de tudo, o comandante do Regimento ser o Tenente Coronel Faustino Duarte. Este antigo craque de futebol da Académica de Coimbra (até entrava nas colecções de cromos da época) fez a sua avaliação da situação e achou que o meu pai precisava era de um calmante, uma horita a descansar na enfermaria, uns dias em casa de baixa e ... mais nada.

É bem possível que a ida para Cabinda, pouco tempo depois, tenha derivado do incidente. De qualquer modo, se o RDM ou, pior ainda, se o CJM[11] tivesse sido aplicado, as consequências teriam sido outras.

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NOTAS:

[1] Ernesto Moreira dos Santos, narrando os combates em Naulila em 1915 e a subsequente retirada da nossa tropa, refere “... o gentio aparecia e, traiçoeiramente, matava-os massacrando-os, arrancando-lhes os olhos, decepando-lhes os membros...horrível...”

[2] No Anexo 1 este assunto está tratado com mais profundidade, caso o leitor se interesse pela matéria.

[3] Um adorno pitoresco, caído em desuso na década de sessenta, era o cofió, um barrete vermelho em forma de tronco de cone (vê-se muito em filmes com cenas passados no Cairo) que a tropa indígena usava quando fazia serviço de sentinela. Os brancos nascidos ou não nas colónias não o usavam.

[4] O leitor já deve ter notado que quem escreve é uma pessoa bem intencionada, sempre pronta a descortinar nobres intenções onde elas não existem...

[5] Aldeia. O termo sanzala tem o mesmo sentido, e é de uso generalizado em quase toda a Angola.

[6] Regulamento de Disciplina Militar, uma espécie de bíblia onde as situações mais abstrusas estão previstas. Não inclui matéria do foro criminal.

[7] personagem insignificante, com a alcunha sugestiva de Ginja, tido por informador da Pide (ainda longe de se travestir de DGS) e grande entusiasta da porrada no soldado (na condição de que não se atrevesse a defender-se). Foi, muito justamente, saneado da tropa, logo a seguir ao 25 de Abril.

[8] se fosse assaltado por dúvidas sobre qual o seu lugar, podia facilmente esclarecer-se com as inúmeras polícias e organizações afins que proliferavam.

[9] Assim rezava a cartilha não escrita que regia as relações sociais

[10] Lembram-se da versão hard core da ceia dos Cardeais?

[11] Código de Justiça Militar, que tratava da matéria criminal. A agressão a um superior (mesmo sem o tinteiro ter acertado), injúrias e perseguição (mesmo sem arma de fogo) caíam direitinho sob a alçada do CJM. As penas aplicáveis e as consequências sobre a carreira, teriam sido, certamente, contundentes.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 6 O Liceu Diogo Cão




Entretanto terminei a primária e entrei para o Liceu, que em Sá da Bandeira tinha o nome de Diogo Cão. Era um Liceu cheio de tradições, (que se mantêm na memória dos membros do reino) grande parte das quais transplantadas do puto[1]. Os estudantes mais adiantados usavam capa e batina, com as fitinhas de cores variadas, e os caloiros eram sujeitos a praxes, em que a careca, funcionando como selo de identificação, era obrigatória.

Faziam-se cortejos com carroças, com os caloiros mascarados, ou pelo menos vestindo trajes caricatos imaginados pelos alunos mais velhos, com direito de praxe, que também integravam o cortejo. Depois havia festarola rija, com copos e bailarico.

O Liceu era, como a cidade, um Liceu bem à portuguesa, que um número muito limitado de pretos não chegava a descaracterizar. Na minha turma não havia nenhum preto. Creio que havia dois mulatos e um indiano. Os indianos gozavam de um estatuto semelhante aos brancos. Tinha um professor indiano (tinha a alcunha de “caneco”, por motivos óbvios), dava Ciências (geográfico-naturais), e foi em sete anos de estudos em Angola, compreendendo uma escola primária e três Liceus, o único professor que tive que não era branco.

Não quero com isto dizer que não houvesse professores pretos ou mulatos, mas quero sugerir, muito claramente, que 400 anos após a chegada dos portugueses, as escolas e Liceus por onde andei eram frequentadas na esmagadora maioria por brancos e neles leccionavam, também na sua esmagadora maioria, professores brancos. A generalidade da população estava como há quatrocentos anos ... ou pior.

Ah! não posso deixar de o referir: havia o dr José Pinheiro da Silva, um mulato que era secretário provincial da Educação por volta de 1964, que o regime fazia questão de exibir em cerimónias públicas, conferindo-lhe uma visibilidade considerável (na foto ao lado, em funções). Só que essa circunstância estava muito, muito longe de ser a regra.

O Dr Pinheiro da Silva “voltou para Portugal” após o 25 de Abril e por cá se reformou. Continua vivo e escorreito, e apareceu há pouco tempo (1999) na televisão, a dizer que a exploração colonial e o racismo são histórias da carochinha (benza-o Deus!).

Uma das actividades em voga naqueles tempos dizia respeito à participação dos estudantes na Mocidade Portuguesa (vulgo “bufa”). Essa participação era obrigatória, ou, pelo menos, era-o na prática. Tal como sucedia com as aulas de Religião & Moral, pouquíssimos eram os pais que se davam ao incómodo de declarar não pretender ter os seus rebentos na bufa.

(Na foto ao lado, o autor à esquerda e o Fernandinho, com as manas trocadas, fardados da bufa, no jardim da Câmara Municipal, o Volvo da tropa ao fundo).

Assim, em determinados dias da semana, o Liceu transformava-se num enorme quartel com o pessoal todo fardado de camisa verde, uns de calça comprida, mais escura ou mais clara, outros de calção, uns com bivaques alongados outros mais a dar p’ró redondo, uns de sapato, outros de bota, enfim, uma tropa fandanga. Num ponto o uniforme era mesmo igual para todos: os cintos de cabedal claro, com a fivela ostentando o S de Saber Servir Salazar.

Já não se fazia a saudação romana[2], tão em voga antes da guerra (fazia-se continência tipo tropa). Já não se faziam as interpelações empolgadas à plateia, respondidas em uníssono vibrante, como se fazia, nos tempos da minha mãe, menina e moça: “- Quem vive?”, “- Portugal, Portugal, Portugal!”; “- Quem manda?”, “- Salazar, Salazar, Salazar!!!”[3].

Tentava-se, contudo, manter viva uma organização, que nunca foi popular entre a juventude, em que os valores da dedicação ao Chefe (e, depois dele, aos outros chefinhos) e à Pátria se misturavam com a exaltação dos heróis e mártires (mais ou menos militarizados, quando não genuinamente militares), da disciplina e da vida ao ar livre. (Recorde o Lá Vamos Cantando e Rindo)

A vida ao ar livre, com acampamentos, banhos de rio, serões à fogueira, fora do redil paterno, era o grande atractivo que a bufa constituía para a malta. Para os mais velhos, incorporados na Milícia, havia uma atracção extra: a instrução com armas de fogo, com uns tirinhos na carreira de tiro, de tempos a tempos.

De resto, as formaturas, ordem unida e desfiles eram uma chatice a que nos baldávamos na medida do possível. É claro que havia quem gostasse. Ainda me lembro do ar embevecido com que um Comandante de Bandeira (alto posto, acima do qual só havia mais um degrau) olhava um desfile de centenas de putos fardados e comentava para um colega de igual patente “Isto é em grande, pá, é quase uma Falange!!!”.

E quanto à bufa, resta-me dizer que cheguei a Chefe de Quina (chefe de esquina, na terminologia da malta), mas a minha vocação não me impulsionou para mais altos vôos. Assim, reformei-me nesta modesta patente.

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NOTAS:

[1] o puto era a versão abreviada e simplificada de Portugal. Também se usava o termo portuga, que designava não o país, mas o habitante, português. De portuga, derivou o termo tuga, muito usado, anos mais tarde, na literatura panfletária dos movimentos de guerrilha.

[2] Ok, ok, a saudação fascista. (Oiçam o Musso)

[3] Como seria de esperar, a seriedade (?) deste cerimonial era abandalhado pela malta que transformava o diálogo em: “Quem vive?”, “Muito mal, muito mal, muito mal”; “Quem manda?”, “O azar, o azar, o azar”.

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 5 O Bairro Militar



(O autor e a mana Fátima no bairro militar com a ponta do Lubango ao fundo, a noxeira à esquerda e a casa das comandâncias à direita)



A meio da quarta classe, estava a minha irmã já no Liceu, mudámos de casa. O bairro militar ficou pronto, de modo que fomos com armas e bagagens para o Alto da Conceição, a dois passos do quartel, com uma bela vista sobre a cidade e de frente para a ponta do Lubango, já então com o Cristo Rei no topo.

O bairro era uma clareira no meio do mato (não havia casas por perto, e as mais próximas eram os edifícios do quartel), aberta numa encosta suave, de modo que quase todas as famílias tinham chitacas onde criavam galinhas, coelhos, etc, e ocupavam as horas vagas a cavar.


(A imagem a seguir, do Google Earth, mostra o pequeno bairro militar na actualidade, cercado de musseque; do parque infantil, nem sombra, mas em lugar de uma noxeira vemos uma mancha de muitas árvores)



Para a miudagem havia um parque infantil, com uma noxeira[1] enorme no meio, mas do que o pessoal gostava mesmo era de caçar sardões e lagartos (havia-os de tamanhos vários e coloridos para todos os gostos) e atirar aos passarinhos com pressão de ar (o Teodorico filho único, e ligeiramente mais velho que eu, era o feliz proprietário de uma). Para além disso, brincava-se com carrinhos (feitos por nós, com suspensão, luzes, caixa basculante e as últimas novidades da técnica japonesa, e conduzidos com um fio duplo, para dar direcção), faziam-se grandes futeboladas e andava-se de bicicleta para todo o lado.

A foto ao lado, tirada numa das chitacas junto ao bairro militar, enviada hoje (12 ABR 2009) pelo Teodorico em que estão Fernandinho Branco, o Teodorico, de óculos, euzinho, a Antoninha, irmã do Fernandinho; à frente está a Milu, irmã mais nova do Fernando e da Antoninha, que viria a morrer pouco depois da foto, num acidente que enlutou o bairro.


Escuso de lembrar que naqueles tempos arcaicos o computador pessoal e os jogos electrónicos estavam longe de ter sido inventados, a televisão dava os primeiros passos no Puto e ainda não chegara a Angola, de modo que aplicação dos tempos livres (que ainda por cima eram muitos) tinha muito que se lhe diga.

Podia-se passear pelos arredores sem problemas de maior, pois as feras não abundavam (reduziam-se a umas cobras e pouco mais) e os pretos eram pacíficos. Havia, contudo, o problema da língua. Contrariamente ao que se passava no norte e centro, a população do sul estava pouco influenciada pelo branco, que tinha que aprender os dialectos locais para se fazer entender. As mucaias[2] continuavam a andar de mamas à vela, dialogando com grande profusão de uelelepós e cás[3], com imensas voltas de missangas ao pescoço, e os cabelos empapados com bosta de vaca amassada com erva. (A foto ao lado foi tirada do site jomagudu, que vos convido a visitar)

Na encosta da ponta do Lubango havia onças, e as chitacas, junto ao bairro militar, eram visitadas por animais de pata grande, que nós gostávamos de pensar serem leões. As pegadas eram maiores que as dos maiores cães que havia no bairro, mas os entendidos não se entendiam sobre o bicho que as deixava. As esperas que os nossos caçadores lhes fizeram foram goradas, de modo que a malta miúda continuava a imaginar um leão a rondar os galinheiros (?!) pela calada da noite, evitando rugir para não nos acordar.

Os caçadores do bairro eram o Sr. Branco (transmontano de Brunhoso, nos arredores de Mogadouro), o Sr. Oliveira (pai do já citado Teodorico) e o Alferes Laborinho (não sei se era miliciano, se do quadro, mas a sua qualidade de oficial obriga a que revele a patente). As caçadas eram, normalmente, bem sucedidas (bons tempos!) e, para além das habituais cabras do mato[4], traziam, de vez em quando, uma pacaça ou uma gunga[5]. (A foto da pacaça foi tirada deste site)

Pelo que já referi sobre a localização do bairro, depreende-se que as idas para escola a pé não eram viáveis. Assim, nos primeiros tempos, a rapaziada tinha à disposição um camião Mercedes, com a caixa de carga provida de bancos corridos, e devidamente protegida por uma capota de lona.

Os bancos eram orientados longitudinalmente, dois laterais e dois centrais, disposição que permitia que a carga humana se deslocasse para a frente quando ocorria uma travagem mais brusca. Nesses casos, formava-se um monte de corpos, pernas, braços, cabeças e pastas do qual saíam gritos selvagens de “inércia!”, à mistura com abafados ais e uis.

Destas travagens resultavam, por vezes, sonoras chapadas, quando uma mão mais ousada aproveitava a confusão para apalpar o que não devia. Por este pormenor, fica revelado que no bairro militar havia rapazes e raparigas, muitos dos quais eram teenagers (nessa altura não sabiam, pois a designação só anos mais tarde entraria no léxico português).

Como o camião era o único meio de transporte existente (transportes públicos não havia, para esta parte da cidade, e carros particulares contavam-se pelos dedos de uma mão), os adultos utilizavam-no nas idas à cidade. Ao fim de pouco tempo, as molhadas provocadas pela inércia dos corpos em movimento, quando o camião travava, começaram a preocupar as mamãs, que se interrogavam como seria a coisa na ausência de adultos, se na presença delas a chungaria era o que era.

Como resultado desta justa apreensão, o camião, e mais tarde o autocarro Volvo que lhe sucedeu, passou a ter um vigilante (um cabo branco), para além do condutor (o Ventura e o Miguel, soldados pretos, milagrosamente livres dos habituais nomes Sabonete e Canivete).

Uma das passeatas que fazíamos, a partir do bairro militar, era a visita aos barracões. Como o nome indica, era um conjunto de vários barracos de pau a pique cobertos por capim seco, que constituíram o primeiro aldeamento dos pioneiros que subiram a serra da Chela, para se instalar no planalto. À semelhança do monumento aos boers, na África do Sul, respirava-se neste local um ambiente de reverência pela memória daqueles que afrontaram distâncias, febres, feras e a hostilidade da população para trazerem a civilização (e fazerem pela vida, claro) ao planalto onde, por via de regra, o governo (distrital, provincial e central) os votava ao mais rigoroso abandono. (veja mais sobre esta história )

Depois da independência estive várias vezes em Sá da Bandeira (que recuperou o nome original de Lubango), mas não me ocorreu informar-me se este vestígio dos primeiros colonos ainda existe, ou se foi arrasado, à semelhança das estátuas dos heróis da colonização (militares na sua grande maioria).

À falta de consenso sobre os “heróis do povo”, o governo da Angola independente arranjou monumentos bizarros, alguns dos quais ainda hoje permanecem em posição. No largo do mercado do Kinaxixi, em Luanda, depois de apeada uma estátua horrorosa alusiva à 1ª grande guerra, colocaram no pedestal uma autometralhadora. No largo 1º de Maio arranjaram um monumento que consistia numa autometralhadora russa a abalroar uma congénere sul africana: o conjunto simbolizava a vitória do povo sobre os carcamanos no Keve, mas foi rapidamente crismada de cópula mecânica (e era o que parecia).

Sobre os heróis não consensuais, lembro o caso da cidade de Novo Redondo que, após a independência, recebeu o nome de N’gunza Kabolo. Mais tarde, “descobriu-se” que o Kabolo, destacado combatente local, não era digno da distinção (traíra a revolução de forma subtil, ou estaria feito com os fraccionistas do Nito Alves). A cidade passou a ser referida apenas como N’gunza até mudar para o nome actual, Sumbe, que não é nome de pessoa, logo, não está sujeito a chatices..

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NOTAS:


[1] que é a árvore que dá noxas (esperavam o quê?).

[2] mulheres.

[3] ao cruzarem-se no caminho, perguntavam pela família, por cada um dos membros da família, juntando a cada nome o respectivo uelelepó (como está?) a que a interpelada respondia um prolongado cáááá (qualquer coisa como está bem, obrigado); muitas vezes já iam de costas, a distâncias consideráveis, e o diálogo continuava, sem se voltarem.

[4] designação que cobria diversos tipos de veados, nunces, antílopes e quejandos.

[5] cornúpeto de índole vacum, de grande corpulência e bifes muito saborosos. Aproveito para pedir desculpa pelos meus baixos conhecimentos de pecuária e ciências afins.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 4 A Escola 60

Iniciado o ano lectivo, matriculámo-nos na Escola 60, que ficava próxima de nossa casa, eu na terceira classe e a minha irmã na quarta.

A escola ficava numa das avenidas principais da cidade, a maior de todas, que ia até à Senhora do Monte. Ficava junto ao parque infantil e a escassas centenas de metros da Administração.


(Desgraçadamente, não encontrei fotos do edifício original, mas Carlos Sanches enviou-me a foto ao lado, com a nova Escola 60; tks, Carlos)


Era um vasto edifício térreo implantado num espaço grande, com muitas árvores, desde goiabeiras e nespereiras até uma enorme mangueira donde pendia um bocado de carril que funcionava como sino para convocar os alunos para as aulas, e para anunciar o seu fim.

Este original carrilhão de um sino só era tocado pelo Canivete, o contínuo já velhote, que tentava impor alguma ordem no recreio dos “minino” assegurando, acima de tudo, que eles não se baldavam para a rua.

Um dos atractivos da rua (para além de umas fugas para o parque, mesmo em frente) era precisamente o edifício da Administração, rua acima, no mesmo passeio da escola. Era aí que os criados que se portavam mal (ou outros altos delinquentes) eram levados para lhes ser aplicado o correctivo em uso nesses tempos: palmatoadas nas palmas das mãos e nas plantas dos pés, quando as mãos ficavam inchadas e insensíveis, não permitindo que o efeito causado fosse proporcional ao número de palmatoadas aplicadas.

O método fazia de tal modo parte da vida doméstica que algumas senhoras, insatisfeitas com o comportamento dos seus moleques, enviavam-nos à Administração com um bilhete em que receitavam o número de palmatoadas a aplicar ao portador.

Os pretos assim castigados ficavam sentados ou deitados por terra até estarem em condições de voltar aos locais de trabalho. E era aí que os íamos ver, não propriamente por gozo, mas por simples curiosidade, a mesma curiosidade, que anos depois, em Nova Lisboa, levava a malta do Liceu a visitar a morgue. Este edifício ficava entre o Liceu e o Hospital, a poucas centenas de metros, e atraía multidões de estudantes, quando corria a notícia de que um morto interessante lá jazia.

Talvez por a escola 60 se situar em plena cidade, os alunos, na esmagadora maioria, eram brancos. Na sala da minha irmã, da 4ª classe, os alunos eram todos brancos (se bem que um deles se chamasse Black, só o era de nome). Na minha sala, a da terceira classe, creio que só havia um cabrito[1].

No ano seguinte, aliás, a situação não mudou muito. Na quarta classe apenas tinha um colega preto, o Fragata, e um cabrito, o Seca. De resto, tudo brancos.

Desconheço o que se passava nas escolas dos arredores da cidade, mas na minha escola, como depois nos vários Liceus que frequentei, a regra era a mesma: a esmagadora maioria dos estudantes era constituída por brancos.

Os poucos estudantes pretos pertenciam, normalmente, a famílias “assimiladas”, como era o caso do Fragata, filho de um enfermeiro bem sucedido e prestigiado, conhecido como o Dr. Fragata. Muitos anos depois, já nos anos 80, voltaria a encontrar o Fragata (filho) como Comissário de Bordo da TAAG, com uma história muito complicada, com diamantes e CIA à mistura.

A generalidade da população tinha as mesmas oportunidades que os brancos (conforme os ideais cristãos e do multiracialismo lusitano) só que não as aproveitava. Mesmo nas cidades não era toda a gente que se podia dar ao luxo de ter os filhos a estudar (mesmo na escola primária), quando podiam estar a trabalhar como criados, chupeteiros, ou simplesmente a ajudar em casa e a tomar conta “dos minino”. Para simplificar, diria que os brancos podiam dar-se a esse luxo, e os pretos não.

Os professores, escusado seria dizer, eram brancos: a professora da terceira classe (uma moça novinha, filha de um militar em comissão), o Professor Candeias (deu aulas à minha irmã; eu não o fiquei a conhecer bem) e o Professor Mourão, que me aturou na quarta classe e que tinha particular gosto em dar reguadas “nas unhas” dos alunos, como ele dizia.

Nesses tempos, essa terapêutica, nas variantes da régua, da “menina dos cinco olhos” e da vara de marmeleiro, era encarada pela generalidade dos pais como aceitável, desde que os resultados escolares fossem bons, e não fosse ministrada com exageros. Havia sempre no ar o espectro da visita do Inspector, figura sinistra e mítica (nunca vi nenhum), mas que curiosamente, não jogava a nosso favor, antes pelo contrário. A referência era do género: “levas nas unhas, e quando o Inspector cá vier, podes fazer queixinhas, a ver se eu me importo!”

Não tenho razões de queixa, nesse campo. Por um lado, era bom aluno e não seria dos mais irrequietos; por outro lado, o professor Mourão inspirava respeito, de modo que quase não precisava de bater (excepto no filho, que tinha a triste sina de ser aluno do próprio pai, o que, como constatei em outras escolas, com outros protagonistas, era mesmo uma triste sina).

Um personagem de destaque nesta comunidade escolar era o professor de canto coral, que acumulava essa função com a de capelão no quartel. Não me lembro do nome do senhor, nem da patente, mas lembro-me distintamente de levar com a vara[2] no toutiço, batida com que sublinhava a pergunta de “quer maisss, quer maisss?” que me dirigia. O capelão exprimia-se com uma dicção sibilante (à moda, diríamos agora, do Dr. Carvalhas), denunciando a sua origem beirã. Eu imitava-o nas partes das cantigas em que tal se proporcionava. Por vezes, está visto, o padre levava a mal...

A talhe de foice, recordo que este capelão deve ter feito uma das primeiras recolhas de canções indígenas, incorporando-as no reportório dos coros que dirigia. Lembro-me da O la mana columuna, etchi ia e do Vivo tchilombo tchetu [3]. As melodias eram muito simples e a letra repetia-se, com pequenas variações. O efeito do coro a cantar a duas vozes era muito agradável, e fazia-me sentir mais próximo da “minha África”, do mato, dos macacos, da cubata, do rio, dos crocodilos...

Nesta Sá da Bandeira tão europeia, só as histórias do Passeio, com leões, onças e hienas me davam um prazer semelhante.

De tempos a tempos a escola era visitada por alguma alta individualidade. Nessa circunstância, agrupávamo-nos por classes, com o professor à frente e ouvíamos com toda a atenção os discursos (ou, pelo menos, dávamos esse ar). Recordo-me duma visita que o governador de Distrito, o então Intendente Américo Castanheira, fez à escola. Fiquei na primeira fila, mesmo à frente da excelência e, de tempos a tempos, aproveitava uma pausa no discurso para meter um sonoro “muito bem!”.

Infelizmente, com o andar dos tempos, passei-me para o futebol e para a bicicleta, e deixei esta prática tão salutar e potenciadora de tachos e prebendas. Se eu soubesse o que sei hoje...
. . . . . . . . . . .

NOTAS:

[1] O mestiço com esta designação era fruto da união de um branco com uma mulata, ou, muito mais raramente, de uma branca com um mulato, tendo o mulato, por sua vez, resultado da união entre preta e branco. Peço desculpa por entrar nestes pormenores tão triviais, para o caso de ser lido pela juventude (temos que lhes ensinar tudo).
[2] este padre era adepto do marmeleiro, creio que por ter maior alcance que a régua e, definitivamente maior alcance que a supra citada “menina dos cinco olhos”.

[3] é claro que não garanto que a ortografia esteja correcta, mas a coisa soava mais ou menos desta maneira.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 3 Um Colono Típico


Depois de alguns dias instalados na Pensão Popular, vetusto edifício colonial com grandes varandas e telhados de zinco, junto ao picadeiro, arranjámos casa junto à fábrica Favorita (farinhas, bolachas e massas alimentícias), uma das poucas unidades industriais existentes na cidade, naquele tempo.

A nossa casa era um dos dois anexos térreos de uma residência com um enorme quintalão, onde havia diversas árvores de fruto (tropicais e mediterrânicas, o que era comum naquele clima), pocilgas e capoeiras. Havia também um par de barracões onde o vizinho que ocupava o outro anexo desenvolvia actividades industriais, com que complementava os seus proventos de talhante e proprietário de gado bovino (à data contava já com uma manada considerável).

Os senhorios, que moravam na casa cujos anexos nos estavam alugados, eram dois velhotes oriundos da região de Aveiro, de Vagos. Tinham um neto, bastante mais velho que eu, que vivia fora de Sá da Bandeira (no mato, portanto), onde vinha de longe em longe. Tinha um criado (preto, como é óbvio) com o qual treinava artes marciais (designação que naquele tempo ainda não era usada). Falavam entre si numa linguagem rica em expressões que eu não entendia (mumuila) misturadas com português. Pareciam dar-se lindamente, se bem que lutassem quase constantemente, às vezes com recurso à catana (neste capítulo ficavam-se pela ameaça rosnada de qualquer coisa como “aicodenga no catana!”[1]).

O nosso vizinho talhante, o Sr. Licínio de Magalhães, estava em Angola desde miúdo e começou a trabalhar antes de aprender as primeiras letras. Como resultado dessa precocidade, não aprendeu a ler. Nunca dei por que se atrapalhasse com os números, essenciais nas actividades a que se dedicava. Tratava os pretos com a superioridade natural que lhe advinha de eles serem “insublizados”[2], mandriões e estarem sempre prontos a roubar o branco.

Era um personagem pitoresco, alegre e exuberante, cheio de histórias que me contava ao fim da tarde, antes que a minha mãe me chamasse para o jantar. Também me ensinou os rudimentos do dialecto da região, a que chamavam mumuila.

Vivia com uma prima, a D. Marta, que fugiu com ele da casa dos pais, em Vila da Ponte ou Caluquembe (não me lembro ao certo), quando tinha catorze anos. Ainda não tinham casado, porque o sr. Magalhães não estava liberto de uma ligação anterior, que não passara da primeira noite. Depois da boda, ao chegar ao leito conjugal, constatou que a noiva não estava “como deve ser”. O escândalo foi imediato e bem à medida do temperamento do noivo: a rapariga foi devolvida aos pais com protestos indignados (e exaltados) por o terem tentado enganar, impingindo-lhe “material já usado”.

A D. Marta já estava naquela altura com quase vinte anos, e a fuga de casa, pela mão do primo, já estava há muito perdoada. De tempos a tempos vinha passar uns dias com ela uma irmã mais nova (mais pequerrucha, pelo que lhe chamávamos Corrucha, e nunca lhe conheci outro nome). Falava “à preto” e andava descalça, para grande raiva da irmã que achava que ela era bicho do mato e se comportava como os pretos. Note-se que a própria D. Marta, depois de se certificar que o marido não estava por perto, largava os sapatos e trepava comigo às laranjeiras e nespereiras, com evidente gozo e com tanta ou mais destreza que eu...

Quase todas as semanas, o pastor que lhe guardava o rebanho vinha prestar contas ao Sr. Licínio de Magalhães, e abastecer-se do necessário. O Passeio[3] era um cuanhama já velho (um seculu)[4] que aproveitava a vinda à cidade para beber o seu copito. Tratava-me por tchindere (patrão, branco) e contava histórias do mato, das hienas, das onças e leões, que iam perdendo o nexo à medida que os copitos se acumulavam, até que o fio da história cessava de todo. Eram histórias cheias de magia, daquela África que eu tinha imaginado e que não havia meio de encontrar.

De tempos a tempos, aparecia um sócio do Sr. Magalhães, herr Schmidt (a quem chamávamos sr. Smite), um alemão gordo e sessentão, carregando imenso nos errres, para não desmentir o estereotipo. Era veterano de multas e cadeias, pois teve o azar de viver na época e local errados. Era salsicheiro e fabricante de bebidas alcoólicas (na altura não se usava muito o termo mixordeiro), o que, a par do azeite e do vinho que atrás referi, eram produtos que (ainda) figuravam no índex salazarista. Só a metrópole os podia produzir, sendo crime fazer concorrência às fábricas do Portugal Continental.

E assim, o sr. Smite e o sr. Magalhães, utilizando as modelares instalações fabris que atrás referi (os barracões e quintalão), produziam enchidos de boa qualidade[5] que eram distribuídos em bacias de folha, cobertas com panos para não dar nas vistas, que os serventes pretos levavam à cabeça até casa dos clientes.

Para além dos enchidos, estes dinâmicos empresários produziam uma beberagem à base de sumo de laranja com açúcar, fermentado em grandes pipos de madeira. A laranjas da região eram boas, posso atestá-lo: nunca bebi tanto sumo de laranja como naqueles tempos. Como depois das aulas não tinha nada que fazer (andava na terceira classe e os trabalhos de casa eram despachados em dois tempos) dava uma mãozinha no corte das laranjas, no abastecimento da prensa (espremedor), na pesagem do açúcar, enfim, em tudo o que não implicasse força, estatura ou conhecimentos especiais (esta última parte era, claro, com o sr. Smite).

A minha colaboração foi sumariamente dispensada no dia em tive a infeliz ideia de escrever na parede exterior do barracão-fábrica, em letras brancas bem visíveis, as palavras MISTER SMITH, orgulhoso dos meus nascentes conhecimentos de inglês. O alemão ia tendo uma apoplexia, fartou-se de gritar na sua língua enquanto eu esborratava o meu trabalho, de modo a torná-lo ilegível. Do linguajar incompreensível do sr. Smite, houve uma palavra que ele repetiu várias vezes, interrompendo o discurso e olhando-me com os olhos muito abertos: “Roçadas!”.

O Roçadas era uma vilória mais para sul, nas margens do rio Cunene. Ainda não havia ponte, de modo que a travessia fazia-se em jangada. No tempo das chuvas, o rio galgava as margens, muito largo e caudaloso, tornando a sua travessia uma aventura e pêras. Quando ocorriam grandes cheias, a margem sul ficava inacessível por uns tempos.

Essa terreola foi escolhida para instalar uma prisão que recebia principalmente presos políticos. Era uma espécie de Tarrafal em Angola para onde passavam, de tempos a tempos, autocarros com levas de condenados, que escalavam Sá da Bandeira e pernoitavam no quartel[6], antes de seguirem viagem.

A prisão recebia também presos de delito comum “especiais”, como era o caso de brancos que praticavam delitos de certo vulto, no campo das actividades económicas. O sr. Smite já conhecia as amenidades do local e estava pouquíssimo interessado em voltar para lá.

Depois deste incidente, é claro que eu deixei de me chegar à fabriqueta, e desviava-me prudentemente quando o alemão passava por mim, resmungando imensos “ach!” e abanando a cabeça.

Muitos anos depois, já na década de 80, voltei a saber novas do Sr. Magalhães. Foi envolvido num dos mega processos dos tempos pós independência, que incidiu sobre o tráfico de diamantes e, por acréscimo, de troca ilegal de moeda[7]. Nessa altura estava velho e adoentado e teria tentado comprar escudos portugueses para vir para Portugal tratar-se. Foi burlado (não chegou a receber os escudos) e ainda por cima acabou por ser apanhado por tabela, quando o tipo a quem entregou largos milhões de kwanzas foi dentro. Creio que acabou por ser absolvido ou teve uma pena muito leve (o alvo principal eram mesmo os traficantes de diamantes).

O sr. Magalhães pode muito bem servir de protótipo do colono que demandava Angola antes do surto de desenvolvimento serôdio que a guerra desencadeou. Provenientes do interior de Portugal, zonas rurais, com um índice de escolaridade baixo ou nulo e, em geral, muito pobres, os colonos não dispunham de qualquer apoio governamental (excepção feita aos colonatos de iniciativa estatal).

Começavam por se alojar em casa de pessoas de família ou conhecidas, muitas vezes da santa terrinha, de cuja carta de chamada necessitaram para conseguirem autorização para irem para África. Conceitos como o de livre circulação, mesmo dentro do espaço dito nacional, eram coisa estranha, naqueles tempos, que feriam a sensibilidade do Prof. Salazar.

Chegado a Angola, o colono começava imediatamente a trabalhar, normalmente para quem viabilizara a viagem, e ao mesmo tempo, ia desenvolvendo um negociozito particular no ramo da agricultura, pecuária (principalmente no sul), pequeno comércio ou pequena indústria (como ilustra o caso do Sr. Magalhães). Com o passar do tempo, se o negócio particular corresse bem, o colono acabava por cortar o cordão umbilical com o patrão (a quem entretanto pagara as dívidas que contraíra para a viagem e instalação) e dedicava-se a tempo inteiro à sua fazenda, à sua loja de comércio geral, à sua fabriqueta.

Estes negócios, se bem que carecessem de apoios estatais, eram largamente favorecidos pela mão de obra barata e pouco conflituosa (muitas vezes pouco menos que escrava) que abundava nas redondezas. Em caso de maka[8] que o colono não conseguisse resolver, o chefe de posto entrava em acção repondo rapidamente o respeito pelo branco e garantindo que a vontade de trabalhar voltava tão depressa quanto o inchaço das mãos (e dos pés, em casos mais rebarbativos) o permitisse.

Boa parte dos colonos como os que acima descrevi chegavam a Angola sem família, não só por a viagem ser uma aventura de desfecho incerto, mas, por serem jovens e de poucas posses, não terem ainda casado.

Os bem sucedidos buscavam mulher em Portugal, o que não os impedia de entretanto se terem “amigado” com uma ou mais pretas que lhes iam dando descendência e aquecendo os pés, nas noites de cacimbo. Alguns chegavam mesmo a casar com uma preta, constituindo casais mistos que tanto faziam sonhar os teóricos da civilização multiracial e pluricontinental, que viam nesses casais a prova de que o povo português não é racista.

Não me parece que prove nada: a distância intelectual entre o colono e o nativo era, por via de regra, muito pequena e a superioridade que o colono sentia ter sobre o preto vinha apenas realçar o ascendente que em Portugal o homem tinha (e ainda tem...) sobre a mulher, em particular entre os mais pobres. O cabeça de casal, o chefe de família, dispunha de um poder absoluto e incontestado sobre o resto da família, a começar pela mulher, fosse ela branca ou preta.

Neste quadro, não se encaixariam, de modo algum, casamentos mistos entre preto e branca[9], que só depois do 25 de Abril começaram a ser comuns. Os filhos do casal misto, mulatos, tinham uma posição semelhante à dos brancos, no que toca ao ascendente sobre os pretos, excepto num pormenor: os casamentos entre mulato e branca eram pouco comuns, ao contrário do que sucedia com casamentos entre mulata e branco. O que é significativo...

. . . . . . . . . .

NOTAS:

[1] Que é como quem diz “levas com a catana, que é um gosto...”

[2] não foi às primeiras que percebi que este interessante vocábulo era uma versão cafrealizada de incivilizado...

[3] Nomes deste tipo eram o pão nosso de cada dia. Nas folhas de pré, no quartel, encontrei Comboio Motor (só um), Canivetes (nome muito vulgar), Sabonetes, e muitos outros atestando o bom gosto dos Chefes de Posto e o seu profundo respeito pelas pessoas que iam registar os filhos. É interessante referir que, depois da independência houve um movimento em sentido contrário, que fez com que muitos angolanos brancos etiquetassem os seus rebentos com N’Zinga M’Bandi, Iara, Luege, Tetembue, Luanha, Diege, e outros que tais. Corria o boato que todas as crianças tinham que ter um nome angolano, boato que só se desvanesceu lá para 1977, quando foi esclarecido (tudo isto a nível de “diz-se diz-se”, veículo informativo privilegiado in illo tempore...) que se consideravam angolanos todos os nomes portugueses. Assim sendo, uma criança poderia chamar-se José Stalin mas não Mao Murtalla Mohamed (para grande desgosto dos admiradores destes destacados lideres).

[4] Seculu era a designação dada aos mais velhos. No norte tinha por equivalente o mais divulgado cota.

[5] Posso atestar que o conteúdo dos chouriços e morcelas era porco legítimo. Não posso, contudo, atestar a saúde dos bichos, nem as condições de higiene no abate, preparação, acondicionamento e distribuição dos mesmos...

[6] Só assim é que eu ficava a saber, pois, como é natural, a passagem destas ramonas interurbanas não era publicitada.

[7] Os outros mega processos foram dirigidos contra os mercenários (no rescaldo da guerra que precedeu a independência, envolvendo os três movimentos, o Zaire e a África do Sul) e outro contra os membros da Disa (polícia secreta) supostamente envolvidos numa tentativa de golpe de estado. Este último processo varreu da Disa quase todos os brancos e mulatos, em particular os investigadores que conduziram o processo contra o tráfico de diamantes. Os investigadores estavam, à partida, limitados no seu campo de acção, mas mesmo assim ainda roçaram gente muito próxima do topo da hierarquia do estado e da tropa. Isso ter-lhes-á sido fatal.

[8] Maka é uma palavra usada um pouco por toda a Angola (e em Moçambique também) que significa conflito, confusão, desordem.

[9] Estou a cingir-me ao ambiente colonial daquele tempo. É claro que um casamento entre um estudante preto e uma branca em Coimbra (ou mesmo nos States) podia abanar um pouco a sociedade local, mas o grau académico e/ou a “assimilação” à cultura europeia do noivo tornavam-no admissível. Reporto-me a Agostinho Neto e a Eduardo Mondlane que, nos anos 50, casaram com senhoras brancas.

domingo, 21 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 2 Sá da Bandeira













Sá da Bandeira não seria, no essencial, uma cidade muito diferente de Lagos, à parte o facto de não ter mar, de ter montanhas a rodeá-la e de ter prédios mais altos e mais novos (a cidade tinha nesse tempo cerca de 70 anos de idade). (Veja mais sobre a cidade aqui, ali , acoli e também neste)

Espraiava-se por uma grande área, deixando espaços consideráveis entre as casas (excepto na zona comercial, mais antiga), não havia selva visível (muito menos feras!), as ruas eram pavimentadas, a água era canalizada, a electricidade alimentava as casas o dia inteiro e a iluminação pública era tão boa como a de Lagos. Por outro lado, havia brancos com fartura por toda a cidade. Não tivemos, pois, o choque que teríamos tido se fôssemos parar à África que eu imaginara.

Sá da Bandeira era uma cidade muito agradável. Situada num planalto, tem um clima temperado, parecido com o mediterrânico, com temperaturas relativamente baixas no cacimbo e moderadas na estação das chuvas. A cidade alongava-se na direcção leste - oeste, e a parte mais antiga estendia-se desde o Palácio do Governador até ao quartel velho, passando pela câmara municipal, igreja da Sé, parque infantil (com um pequeno jardim zoológico) e picadeiro.

O picadeiro era um jardim, com lagos e zonas calcetadas, onde ao anoitecer e ao fim de semana as pessoas passeavam para lá e para cá, dando voltas e mais voltas ao local (daí o nome de picadeiro...) conversando, cumprimentando os conhecidos, comentando os acontecimentos do dia ou da semana, vendo e sendo vistos.

Um dos lagos servia para uma brincadeira muito popular entre os citadinos, que assim animavam as tardes de um determinado dia do ano (não me recordo ao certo qual era a efeméride que se comemorava, se é que alguma seria). Tratava-se de agarrar os chupeteiros[1], que passavam desprevenidos e atirá-los para dentro do lago. O lago não tinha sequer um metro de água, de modo que o mergulho, ainda que forçado, não era perigoso, e a malta divertia-se vendo os pretitos (os chupeteiros eram pretos, evidentemente) saírem da água ensopados que nem pintos, aflitos com a perda da mercadoria. Era, pois, uma brincadeira inocente e sem consequências pois as vítimas não levavam a mal (e se levassem, lá estariam os sipaios para o que desse e viesse).

Recém chegados à terra, ignorávamos que estas tradições mais não eram que a expressão sã da multi racial vivência que só o colono português conseguiu desenvolver na sua pluri secular presença em África. Assim, uma tarde em que passeávamos no picadeiro, vimos uns latagões, já em idade de ter juízo, à caça de um pretito, que fugia espavorido, enquanto um outro estava já no banho, para gáudio geral. O meu pai agarrou o miúdo e fez frente aos brincalhões que o perseguiam, reprovando a sua atitude e aconselhando-os a deixarem o miúdo em paz.

É claro que esta atitude não foi bem aceite pelos presentes, que ficaram espantados[2], mas a coisa ficou por ali. O meu pai viria a ter alguns problemas, pois nunca se adaptou ao modo criativo como em Angola se seguia a máxima de Salazar, segundo a qual uns safanões bem dados a tempo e horas evitam males maiores. Os indígenas desta terra eram tidos pelo colono como uma espécie de crianças grandes, de modo que levavam bastantes safanões a tempo e fora dele...
Para lá da praça Artur de Paiva, onde se situava o palácio do Governador e o Banco de Angola, uma das avenidas principais da cidade alongava-se passando pelo Liceu Nacional de Diogo Cão, pelo Grande Hotel da Huíla (bem ao estilo colonial, com todo o conforto possível na época) e pelo Hospital. Mais adiante, uma transversal para a esquerda levava a um bairro novo com muitas vivendas em construção, onde fora inaugurada pouco tempo antes a Escola Industrial e Comercial.

Continuando no mesmo sentido chegaríamos, já na periferia da cidade, ao parque da Senhora do Monte (reminiscência dos madeirenses que se encontravam entre os primeiros colonos que se instalaram no planalto). Para além de jardins e viveiros de plantas, nele se situava um lago-piscina de grandes dimensões (foto seguinte, de 1972, do blog de Jorge Duarte) que fazia as vezes de praia, um casino, a estação de tratamento de água e, já na encosta vizinha, a capelinha da Senhora do Monte.

Para o lado contrário, para lá do quartel velho, o asfalto e a cidade terminavam na vizinhança do campo de futebol (pelado, como era regra naqueles tempos). Seguia-se um vale descampado por onde corria um riacho que separava a cidade da encosta do Alto da Conceição. Passado o riozito, por uma pequena ponte, a estrada serpenteava pela encosta, por onde a cidade começava a expandir-se, salpicando-a de casas rústicas rodeadas por chitacas[3]. A estrada descrevia uma grande curva para a direita, ao fim da qual se encontrava o quartel (o novo) onde estava instalado o Regimento de Infantaria, uma das poucas unidades que guarneciam o território angolano, antes do início da guerra.

Um pouco abaixo do quartel, na encosta virada para a cidade, estava em construção o bairro militar, destinado aos oficiais e sargentos em serviço no Regimento, com família. Tratava-se de um pequeno grupo de quatro prédios de dois pisos, com dezasseis apartamentos para sargentos, quatro para oficiais e duas vivendas geminadas para o comandante e 2º comandante. Entre os edifícios maiores, ficavam os anexos destinados aos faxinas e impedidos, soldados pretos destacados para servirem de criados, respectivamente, aos sargentos e aos oficiais.

Para sul, erguia-se uma encosta encimada por um paredão quase vertical, desenvolvendo-se paralelamente à cidade, que terminava por uma promontório (a Ponta do Lubango) onde se viria a erguer a estátua do Cristo Rei.
Resumindo, Sá da Bandeira era, em 1958, uma cidadezinha bem portuguesa, a que não faltava uma capelinha erigida em honra de uma Nossa Senhora madeirense, um Cristo Rei vigiando lá do alto e montes de portugueses em praticamente todas as actividades. Havia, como complemento, uma população local, composta por negros atrasados e pacíficos, mão de obra barata e serviçal, que fornecia os criados, serventes, pastores, sipaios e soldados, essenciais ao funcionamento do distrito.

. . . . . . . . .

NOTAS:

A foto colorida do Cristo Rei, empoleirado na ponta do Lubango não conta do livro e foi tirada do Blog Fotos de Angola, onde pode encontrar muitas mais fotos.

[1] Os chupeteiros eram, como atrás referi, vendedores ambulantes, miúdos que circulavam pela cidade com caixas de doces vários (em particular “chupetas”, ou chupa-chupas), normalmente por conta de uma industrial doméstica, que assim acrescentava uns cobres aos ganhos do “cabeça de casal”

[2] Terão certamente pensado, como na anedota, qualquer coisa como “branco não é di cá...”

[3] Pequenas hortas.

sábado, 20 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 1 Vamos para a África!

Quando o meu pai nos deu a notícia de que íamos para a África, a minha irmã e eu ficámos numa excitação dos diabos. Estávamos com sete e nove anos de idade, ela mais velha que eu. Já tínhamos passado duas temporadas de seis meses cada em Tavira, a família já tinha mudado de casa duas ou três vezes, de modo que mais uma mudança não era propriamente novidade.

Só que Tavira estava a dois passos[1], pelo menos estava dentro do universo atingível e conhecido, e a África era um mistério. Era verdadeiramente um outro mundo.

Daí em diante, respirámos África, levámos África para a escola, comemos com ela à mesa, levámo-la para a cama, sonhámos com ela. O que os nossos pais sabiam de Angola, outra palavra mágica que progressivamente foi substituindo África, era muito pouco. Muitas vezes, as nossas perguntas fantasiosas eram complementadas com as fantasias deles. Poucas eram respondidas com informações precisas e muitas outras desencadeavam um rosário de avisos e conselhos: cuidado com os insectos (podem picar), cuidado com as cobras (podem ser víboras, muito venenosas), com os cães, gatos e macacos (podiam ter raiva), com os rios (têm crocodilos e hipopótamos), com os pretos[2] (parece que alguns ainda eram antropófagos)...

Na minha imaginação, íamos viver para uma terra com árvores imensas, donde pendiam lianas, cada uma delas com um imponente macacão na ponta. As casas eram palhotas construídas à beira rio onde deslizavam lentos troncos de árvore, dentre os quais eu tentava descortinar os inevitáveis crocodilos.

Dos pretos tinha uma ideia confusa (cafres seminus espreitando das moitas, de lança em riste, osso atravessado na trunfa e grandes argolas pendentes das orelhas) que acabou por se fixar em duas personagens imaginadas, com idades semelhantes às nossas, e destinadas a voltar connosco para a Metrópole (outra palavra nova, rapidamente integrada no nosso vocabulário): o Mapuço e a Xilau.

Os preparativos da praxe incluíram o encaixotamento da mobília (camas, mesa, etc) pois não se sabia o que nos esperava por lá, muito menos por quanto tempo lá ficaríamos. De facto, nesses tempos pacíficos e sonolentos, era habitual os militares deixarem-se ficar décadas pelas colónias, onde os vencimentos eram superiores e a vida era mais barata que na metrópole.

Isto, para sargentos, como o meu pai, podia fazer a diferença entre uma vida no limiar da pobreza, e um relativo desafogo. Na metrópole, os filhos teriam que, desde cedo, aprender um ofício que lhes permitisse contribuir para as despesas da casa. Na melhor das hipóteses, poderiam ir para o seminário donde sairiam padres ou, ao menos, com alguns estudos. Em África teriam possibilidades de estudar (sem terem que vestir as saias de seminarista) e (quem sabe?) até poderiam chegar um dia à Universidade, onde se produziam (em regime de exclusividade) os canudos, objectos raros e muito eficazes naqueles tempos.

Para os oficiais, as comissões serviam de trampolim para cargos políticos, muitas vezes na administração colonial, para uma mais rápida ascensão na carreira militar ou simplesmente para satisfação do espírito de aventura em caçadas e safaris.

Muitos desses militares por lá ficaram, nem todos enriqueceram. Alguns, minados pelo paludismo, pela bilharziose, pelas biliosas, pela doença do sono, pela sífilis, tiveram um fim de vida muito diferente do que imaginaram quando rumaram a África.

Pensando numa estadia prolongada, um dos produtos que fazia sentido levar era o azeite, latas e mais latas de azeite, não na moderna embalagem de supermercado mas em lata de vinte litros, tipo embalagem hospitalar. Na altura estranhei imenso que em Angola não houvesse azeite (nem vinho), quando as informações que íamos recolhendo[3] eram unânimes em afirmar que a terra era muito fértil, “espeta-se um pau de vassoura na terra, e dias depois já tem raízes e folhas”. Ainda mais estranhei quando me explicaram que a vinha e a oliveira se davam perfeitamente no sul de Angola, mas o Salazar não as deixava plantar. O vinho dava de comer a um milhão de portugueses[4] e era preciso evitar a concorrência; com o azeite, a lógica seria a mesma.

E assim, um belo dia partimos para Lisboa, com armas e bagagens, onde embarcámos no Quanza, venerável banheira prestes a fazer trinta anos, mas que ainda faria mais uma década inteirinha antes de passar à reforma[5].

Depois dos enjôos habituais no início da viagem, escalámos Las Palmas e Ponta Negra antes de tocar os portos angolanos de Luanda e Lobito, para finalmente sairmos em Moçâmedes, nosso porto de destino. Lembro-me de ter estranhado ver tão poucos brancos em Ponta Negra (no então Congo Francês, futuro Congo Brazzaville, depois República Popular do Congo), em contraste com as cidades angolanas que escalámos, onde se viam quase tantos brancos como pretos, e nem todos aqueles aparentavam um desafogo por aí além.

Aliás, nos porões do Quanza, em beliches empilhados na periferia interior dos porões, na chamada 3ª classe suplementar, viajou uma malta barulhenta e de “garrafão em punho”, que se destinava a um colonato qualquer (creio que era a Cela, mas não estou certo). Como mais tarde viria a confirmar, o colono típico pouco se distinguia do nativo[6], excepto na cor da pele. Não é de estranhar, pois, que esta característica assumisse por vezes uma importância decisiva nas relações do colono, branco, com o nativo, preto...

Em Moçâmedes estivemos poucos dias, durante os quais pouco mais fizemos que passear e matar o tempo, mas que me proporcionou o primeiro contacto com o deserto. Não tivemos que ir longe, pois a periferia da cidade era um imenso areal que se afastava do mar, ao contrário dos areais a que estávamos habituados.

Finalmente chegou o dia de S. Comboio, e lá fomos, serpenteando serra da Chela acima, até Sá da Bandeira, sede do distrito da Huíla, onde iríamos residir durante os próximos tempos, pouco mais de dois anos.

A linha do Caminho de Ferro de Moçâmedes tinha sido poucos anos antes alargada para a bitola africana (1,067 m), pelo que a viagem não teve o toque de aventura dos tempos antigos. Até 1954, a linha tinha bitola reduzida (60 cm), e os combóios eram pouco mais que brinquedos. Nas subidas mais íngremes os passageiros tinham que descer das carruagens e subir a encosta a pé, enquanto o comboiozinho, mais aliviado, resfolegava serra acima. Quando se chegava a um troço mais plano, os passageiros voltavam a ocupar os seus lugares e a viagem prosseguia normalmente.

Parte do material circulante de bitola reduzida ficou em Sá da Bandeira, com o objectivo de recolher a um museu que, entretanto, seria criado. Até lá, ficou num descampado, não muito distante do Liceu, onde fui visitar as locomotivas e carruagens, pouco maiores que as que circulam no Jardim Zoológico de Lisboa.


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NOTAS:


[1] Naquele tempo, 1957, ir de Lagos a Tavira era uma viagem e tanto, que não se fazia por dá cá aquela palha...

[2] Deixo desde já assente que não me referirei às pessoas de raça negra como negros, nem como pessoas de cor, indígenas, autóctones, nativos, melanodérmicos, ou outro qualquer eufemismo. Referir-me-ei a eles, na maioria dos casos, simplesmente como pretos, por contraposição a brancos. Estou consciente de que esse termo, nos dias de hoje, tem uma carga pejorativa considerável. Não é minha intenção ofender ninguém, mas também não é minha intenção usar outra qualquer designação (como, por exemplo, o idiota pessoa de cor), cuja correcção política mudará, certamente, com a próxima moda que vier dos States...

[3] Como colonos em perspectiva, naturalmente começámos a contactar com pessoas conhecidas (ou conhecidas de conhecidos nossos) que tinham estado em África ou que tinham lá parentes.

[4] Este condicionalismo protegia, naturalmente, os portugueses de Portugal (ou de primeira) da concorrência dos portugueses das colónias (de segunda, os brancos lá nascidos; de terceira os “de cor” assimilados).


[5] O Quanza tem uma história peculiar: foi o único navio que Portugal recebeu a título de reparações de guerra, por conta de algumas unidades afundadas pela marinha alemã no final da Grande Guerra. Foi lançado à água em Hamburgo no 1º de Junho de 1929, e foi-lhe dado o nome de Portugal. Pouco depois descobriu-se que já havia um Portugal nos registos náuticos do país, de modo que foi preciso arranjar-lhe à pressa outro nome. E assim, quando o navio foi entregue à Companhia Nacional de Navegação, em 5 de Setembro de 1929 já não era Portugal, mas Quanza, nome que manteve até ser abatido, e vendido a um sucateiro de Bilbau, em 1968.

[6] Nesta fase da minha vida, as palavras novas surgiam em catadupas, primeiro as portuguesas, a seguir as aportuguesadas do mumuila e depois as pertencentes a este dialecto.